o quarto de giovanni - james baldwin

" [...] essas noites transcorriam sob um céu estrangeiro, sem ninguém nos vendo, sem a ameaça de nenhum castigo— foi este último fato que nos levou à derrocada, pois nada é mais insuportável, uma vez obtido, que a liberdade."

"Ele levantou a cabeça no momento em que abaixei a minha, e nos beijamos, meio que por acidente. Então, pela primeira vez na vida, senti de verdade a presença do corpo de outra pessoa, o cheiro de outra pessoa. Estávamos abraçados. Era como ter na minha mão um pássaro raro, exausto, quase morto, que por um milagre eu tivesse encontrado. Meu medo era intenso; tenho certeza de que ele também estava apavorado, e nós dois fechamos os olhos. Se agora me lembro de tudo tão nitidamente, tão dolorosamente, é porque na verdade jamais esqueci, nem por um instante."

"Talvez imaginasse que, ao crescer, eu ia me aproximar dele— e, no entanto, agora que meu pai estava tentando descobrir alguma coisa a meu respeito, eu fugia dele o tempo todo. Não queria que ele me conhecesse. Não queria que ninguém me conhecesse. Além disso, estava fazendo com ele aquilo que todos os jovens inevitavelmente fazem com seus pais: começava a julgá-lo. E a própria severidade desse julgamento, que partia meu coração, revelava, embora na época eu não pudesse dizê-lo, quanto eu o havia amado, e que aquele amor, tal como minha inocência, estava morrendo."

"“Eu só tenho você”, disse, com um sorriso tímido e constrangido. “Seja cuidadoso.” “Papai”, disse eu. Então comecei a chorar. E se falar já tinha sido uma agonia, chorar era pior ainda, no entanto eu não conseguia parar. O rosto de meu pai mudou. Ficou velhíssimo, e ao mesmo tempo absolutamente, irreprimivelmente, jovem. Lembro que fiquei atônito, no centro imóvel e frio da tempestade que estava acontecendo dentro de mim, ao me dar conta de que meu pai havia sofrido, ainda estava sofrendo."

"Depois que saí de casa, é claro, ficou muito mais fácil lidar com meu pai, e ele nunca teve motivo para se sentir excluído da minha vida, pois eu sempre conseguia, quando conversávamos, dizer-lhe o que ele queria ouvir. E nos dávamos muito bem, pois a visão da minha vida que eu transmitia a meu pai era precisamente aquela em que eu precisava acreditar, com todas as minhas forças."

"As pessoas que julgam ter força de vontade e controlar seu próprio destino só conseguem continuar acreditando nisso tornando-se peritas em enganar a si próprias."

"“Ninguém pode ficar no jardim do Éden.” Depois acrescentou: “Por que será?”.
Talvez a vida só ofereça as opções de lembrar-se do jardim ou esquecê-lo. Uma coisa ou outra: é preciso ter força para lembrar, e é preciso ter outro tipo de força para esquecer, e somente um herói é capaz de fazer as duas coisas.
As pessoas que lembram correm o risco de enlouquecer de dor, a dor da morte de sua inocência, a recorrer eternamente; as que esquecem se arriscam a mergulhar em outra espécie de loucura, a loucura de negar a dor e odiar a inocência; e o mundo basicamente se divide entre loucos que lembram e loucos que esquecem. Os heróis são raros."

"Giovanni olhou para mim. E esse olhar me fez sentir que nunca, em toda a minha vida, ninguém havia me olhado diretamente."

"“Vem cá, me explica essa coisa do tempo. Por que é que é melhor chegar tarde do que cedo? As pessoas sempre dizem: é preciso esperar, esperar. Elas estão esperando o quê?” “Bom”, comecei, sentindo que estava sendo atraído para águas profundas e perigosas, “acho que as pessoas esperam pra ter certeza do que é que estão sentindo.”
Apontou para meu coração. “Nas vezes que esperou— você acabou tendo certeza?”"

"Mas você pode fazer com que o tempo passado com ele não seja sujo de modo algum; vocês podem dar um ao outro alguma coisa que torne vocês dois pessoas melhores— pra sempre— desde que não tenham vergonha, que se recusem a se proteger.” Ele fez uma pausa, olhando para mim, depois desviou a vista para a taça de conhaque em sua mão. “Se você ficar se protegendo o tempo todo”, acrescentou, mudando o tom de voz, “vai acabar preso dentro do seu próprio corpo sujo, pra sempre, pra todo o sempre— como eu.”"

"Giovanni estava sentado ao sol, e seus cabelos pretos colhiam o brilho amarelo do vinho e as muitas cores mortiças da ostra onde o sol a atingia."

"Senti uma pontada abrupta, intolerável, de vontade de ir para casa; não para aquele hotel, num dos becos de Paris, onde a concierge me impedia de entrar exibindo a conta que eu não havia pago; mas para a minha casa, do outro lado do oceano, de voltar para as coisas e as pessoas que eu conhecia e compreendia; voltar para aquelas coisas, aqueles lugares, aquelas pessoas que, inevitavelmente, por maior que fosse meu rancor, eu sempre haveria de amar mais do que quaisquer outras. Eu nunca tinha me dado conta de um sentimento assim em mim, e aquilo me assustou. Vi a mim mesmo, com nitidez, como um andarilho, um aventureiro, a zanzar pelo mundo, sem âncora."

"E eu me dava conta de que aquela criancice era absurda na minha idade, e de que a felicidade que lhe dava origem o era ainda mais; pois naquele momento eu realmente amava Giovanni, que nunca me parecera mais belo do que naquela tarde. E, olhando para seu rosto, percebi que era muito importante para mim ter o poder de fazê-lo ficar tão luminoso. Percebi que eu seria talvez capaz de abrir mão de muita coisa para não perder aquele poder. E senti-me fluir em direção a ele, como flui um rio depois que o gelo se derrete."

"E fiquei a contemplar o quarto exacerbando de modo nervoso e calculista minha inteligência e todas as minhas forças, como se avaliasse um perigo mortal e inevitável: a contemplar as paredes silenciosas do quarto, com aquele casal distante e arcaico de namorados, presos num interminável roseiral, as janelas que eram como dois grandes olhos de gelo e fogo, o teto escuro como aquelas nuvens nas quais por vezes demônios se manifestam, que obscurecia sem chegar a suavizar a malignidade por trás da luz amarela que pendia do centro dele, como uma genitália doente e indefinível. Debaixo daquela seta rombuda, daquela flor de luz esmagada, viviam os terrores que acossavam a alma de Giovanni."

"Eu estava terrivelmente confuso. Às vezes dizia a mim mesmo: mas esta é mesmo a sua vida. Pare de lutar. Pare de lutar. Ou então pensava: mas estou feliz. E ele me ama. Estou protegido. Às vezes, quando Giovanni não estava perto de mim, eu pensava: nunca mais vou deixar que ele me toque. Então, quando me tocava, eu pensava: não faz mal, é só o corpo, não vai durar muito. Quando terminava, eu ficava deitado na escuridão, ouvindo-o respirar, sonhando com mãos me tocando, as mãos de Giovanni ou de quem quer que fosse, mãos que teriam o poder de me esmagar e me restaurar."

"Cheguei ao outro lado do bulevar sem ousar olhar para trás, perguntando a mim mesmo o que ele vira em mim que provocara tanto desprezo imediato. Eu já era velho o suficiente para saber que não tinha nada a ver com meu jeito de andar ou de mexer as mãos, nem com a minha voz — a qual, aliás, ele nem sequer tinha ouvido. Era outra coisa, que eu jamais conseguiria ver. Eu jamais ousaria vê-la. Era como olhar diretamente para o sol."

"Aquela foi talvez a primeira vez na minha vida em que a morte surgiu para mim como uma realidade. Eu pensava nas pessoas que antes de mim haviam contemplado o rio e nele tinham ido dormir. Elas me faziam pensar. Eu me perguntava como haviam feito aquilo— ou seja, cometido o ato físico em si. Pensamentos suicidas tinham me ocorrido quando eu era bem mais jovem, como talvez aconteça com todo mundo, mas naquela época o suicídio teria sido uma vingança, uma maneira de dizer ao mundo que ele me proporcionara sofrimentos terríveis. Mas o silêncio da noite, enquanto eu caminhava para casa, nada tinha a ver com aquela tempestade, com aquele menino agora distante. Eu me perguntava sobre os mortos apenas porque os dias deles haviam terminado, e não sabia como viveria os que ainda me restavam."

"Segurou meu rosto entre as mãos, e imagino que nunca antes tamanha ternura produzira tanto terror quanto o que senti."

"Eu me aproximei de Giovanni como se estivesse sendo empurrado, colocando as mãos nos seus ombros e me obrigando a olhá-lo nos olhos. Sorri, e tive a exata impressão naquele momento de que Judas e o Salvador haviam se encontrado dentro de mim. “Não tenha medo. Não se preocupe.” Senti também, estando tão perto de Giovanni, movido por tamanha vontade de conter o terror dele, que— mais uma vez!— o poder de decisão fora arrancado de minhas mãos. Pois nem meu pai nem Hella eram reais naquele momento. E, no entanto, nem mesmo aquele momento era tão real quanto a consciência desesperadora de que nada era real para mim, nada jamais voltaria a ser real para mim— a menos que, é claro, aquela sensação de estar caindo fosse a realidade."

"Ajudaria se eu conseguisse me sentir culpado. Mas o fim da inocência é também o fim da culpa."

"Apesar do que possa parecer agora, sou obrigado a confessar: eu o amava. Creio que nunca mais vou amar alguém tanto assim. E isso seria um grande alívio se eu também não soubesse que, quando a lâmina descer, o que Giovanni vai sentir, se sentir alguma coisa, será alívio."

"“Mas eu vou pros Estados Unidos”, apressei-me a dizer. Ele olhou para mim. “Quer dizer, não tenho dúvida que vou voltar pra lá algum dia.” “Algum dia”, ele repetiu. “Tudo de ruim vai acontecer— algum dia.” “Ruim por quê?” Giovanni sorriu. “Porque você vai voltar pra casa e então vai descobrir que não é mais a sua casa. Aí é que você vai ficar mal mesmo. Enquanto estiver aqui, você pode sempre pensar: um dia vou voltar pra casa.” Ele brincou com meu polegar e sorriu. “N’est-ce pas?” “Bela lógica”, retruquei. “Quer dizer que eu tenho uma casa pra onde posso voltar, desde que não vá pra lá?” Ele riu. “Mas não é isso mesmo? Você só passa a ter uma casa quando vai embora dela, e depois, quando foi embora, você nunca mais pode voltar.” “Acho que já ouvi essa música antes.” “Ah, não tem dúvida”, respondeu Giovanni, “e aposto que você vai voltar a ouvir outras vezes. É uma dessas músicas que vai ter sempre alguém em algum lugar cantando.”"

"“Viens m’embrasser”, ele pediu. Eu tinha nítida consciência de que Giovanni estava segurando um tijolo, de que eu também estava segurando um tijolo. Por um momento, tive a sensação de que, se não me aproximasse dele, usaríamos os tijolos para nos atacarmos até a morte. E no entanto não consegui me mexer de imediato. Nós nos entreolhávamos separados por um espaço estreito cheio de perigos, que quase parecia rugir, como uma labareda. “Vem”, Giovanni disse. Larguei meu tijolo e fui até ele. Logo em seguida, ouvi o outro tijolo caindo no chão. Em momentos como aquele, eu tinha a impressão de que estávamos apenas sofrendo e cometendo uma espécie mais prolongada, menor e mais perpétua, de assassinato."

"Eu a amava tanto quanto antes, e continuava sem saber o quanto a amava."

"Parado à porta, com minha mala e a mão na maçaneta, olhei para ele. Então senti vontade de lhe implorar que me perdoasse. Mas seria uma confissão excessiva; se eu fraquejasse naquele momento, ficaria preso para o resto da vida naquele quarto com ele. E de certo modo era exatamente o que eu queria. Senti um tremor me percorrer, como o início de um terremoto, e por um instante tive a sensação de estar me afogando nos olhos dele. Seu corpo, que eu conhecia tão bem, brilhava na luz, saturando e adensando o ar entre nós. Então alguma coisa se abriu no meu cérebro, uma porta secreta e silenciosa, assustando-me: não me ocorrera até aquele instante que, ao fugir do corpo de Giovanni, eu confirmava e perpetuava o poder daquele corpo sobre mim. Agora, como se eu tivesse sido marcado a ferro, seu corpo estava gravado na minha mente, nos meus sonhos."

"A cada passo que eu dava era mais impossível voltar atrás. E minha mente estava esvaziada— ou melhor, era como se tivesse se transformado numa ferida enorme, anestesiada. Meu único pensamento era: Um dia ainda vou chorar por isso. Um dia desses vou começar a chorar."

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